Endereço: MPB
Endereço: MPB
“Nove gerações de mulheres sucederam-se entre essas paredes.
A casa supostamente me pertence. Já paguei por ela, deveria ser minha.
Mas não. Na verdade, uma casa nunca pertence. Escapa à propriedade.
Ela é do tempo. (…)
É uma instalação, em todos os sentidos da palavra.
Instala-se a mulher, os filhos e o dinheiro”.
Marguerite Duras
A casa própria é quase uma obsessão brasileira. Não é para menos, num país em que a gente nunca sabe o que vai acontecer no dia seguinte, ter segurança de moradia já é meio caminho andado. Ainda que economistas afirmem o mau negócio que é emprestar dinheiro do banco para comprar um imóvel, muita gente se arrisca na questão para ter um lar para chamar de seu. Porque casa é mais que teto e paredes; ter um lugarzinho significa alcance, conquista (e depois de algum tempo, reforma…). É sonho plantado por nossos ancestrais, desde que largamos a vida nômade, que tratamos de realizar como prova de êxito. E é também a base complementar do espaço público, das diferenças de comportamento, dos fenômenos sociais que conhecemos resumidos no título de DaMatta “A casa e a rua”.
Muito poderia ser desenvolvido ainda sobre esse tema, em qualquer um dos aspectos citados, mas a coluna trata de música e hoje vamos visitar as casas da MPB. Quem abre a edição são os poucos conhecidos de nome Gilson, Joran e Marcelo, mas muito de repertório. Os três escreveram “Casinha branca” em 1979 para trilha da novela Marrom Glacê, a música ficou quase um ano nas paradas, vendeu mais de 500 mil cópias e Gilson ganhou disco de Ouro e de Platina. Até hoje a composição anda por aí, vira e mexe alguém regrava, “Eu queria ter na vida simplesmente / Um lugar de mato verde / Pra plantar e pra colher / Ter uma casinha branca de varanda / Um quintal e uma janela / Para ver o sol nascer”.
Outro sonho de sossego de casa, que tem o mesmo tom de calmaria, de alma hippie, de vontade de tranquilidade é a escrita por Tavito e Zé Rodrix para o sexto Festival Internacional da Canção em 1971. Elis Regina presidia o júri e ao ouvir a canção quis gravar. Uma curiosidade: Zé Rodrix, o letrista, em entrevista à Folha de S. Paulo disse que não acreditava muito nesse lance de campo, que se considerava um sujeito completamente urbano. “Eu quero uma casa no campo / Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé / Onde eu possa plantar meus amigos / Meus discos e livros e nada mais”.
E para encerrar o capítulo de casinhas rurais, duas composições: a escrita por Renato Teixeira, uma espécie de demonstração de intenções à amada: “Fiz uma casinha branca / Lá no pé da serra / Pra nós dois morar / Fica perto da barranca do Rio Paraná / A paisagem é uma beleza / E eu tenho certeza / Você vai gostar” e a de J Cascata, também com desejos de convencer quem ele pretende como companheira. Cascata tenta cobrir todas as bases, além do sossego da natureza, a garantia de tecnologia (se fosse escrita hoje, certamente teria wi-fi): “Se você quisesse / Morar na minha palhoça / Lá tem troça, se faz bossa / Fica lá na roça à beira do riachão / E à noite tem um violão / Uma roseira cobre a banda da varanda / E ao romper da madrugada / Vem a passarada / Abençoar nossa união / Tem um cavalo / Que eu comprei em Pernambuco / E não estranha a pista / Tem jornal, lá tem revista / Uma Kodak para tirar nossa fotografia /
Vai ter retrato todo dia / Um papagaio que eu mandei vir do Pará / Um aparelho de rádio-batata”.
Quando eu era menina li trechos de “João Ternura”, único romance de Aníbal Machado, há uma passagem que sempre ficou batucando na minha cabeça. João escreve para amada e ao contar de suas saudades e de seu bem querer, cita que ele gosta tanto dela, que acaba por gostar também de tudo que faz parte de seu universo, incluindo sua rua, sua casa, os muros… Um pouco mais pra frente, conheci a música de Lápis e a associação entre os dois textos foi imediata: “Onde ela mora a lua nasce mais linda / A noite tem mais estrelas / No campo nasce mais flor / Onde ela mora a vida é bem mais bonita / Lá não existe tristeza / Lá que nasceu nosso amor / Onde ela mora minhas mágoas passam longe / Solidão de mim se esconde / Que vontade de viver”.
Na MPB tem gente bem generosa, portas abertas, sem restrições. Foi esse universo que Mariana Aydar e Duani retrataram em “Aqui em casa”: “Quando você chegar / Não precisa interfonar / Mete a mão na maçaneta e pode entrar / Você já sabe onde fica tudo aqui em casa / Fique a vontade, sem cerimônia (…) Na geladeira tem salada / O incensário tá no armário / Aquele verdinho que você gostou / Deixa queimar / Não precisa me esperar pra nada / Você é a visita que eu gosto de ter em casa”.
Um dos endereços mais famosos da MPB é a Rua Nascimento Silva, que está lá estampado, só falta CEP, em “Carta ao Tom 74”, de Toquinho e Vinícius de Moraes. “Rua Nascimento Silva, 107 / Você ensinando pra Elizete / As canções de ‘Canção do amor demais’ / Lembra que tempo feliz / Ai que saudade / Ipanema era só felicidade / Era como se o amor doesse em paz”.
Já que Vinícius entrou na roda, é certo, é justo, lembrar de outro endereço: Rua dos Bobos, número zero. Mas “A casa” não é uma obra fictícia, ela tem nome e endereço real: Casapueblo fica em Punta Ballena, no Uruguai. O fato é que o artista plástico Carlos Vilaró teve ideia de construção em 1958. No início era um quarto feito com latas, depois uns ladrilhos e Vinícius, seu amigo, a cada visita encontrava o lugar diferente, pedaços de paredes e partes em escombros. O Poetinha gostava de passar as tardes lá com seu violão e foi naquele lugar que cantou a música-homenagem pela primeira vez e dedicou-a às filhas do amigo. A construção do palacete demorou 30 anos e hoje é museu, galeria de arte e hotel: “Era uma casa muito engraçada / Não tinha teto, não tinha nada / Ninguém podia entrar nela, não / Porque na casa não tinha chão”.
E a demolição da favela que colocou abaixo um monte de barracos para construir arranha-céu? As cenas cantadas nos versos de Adoniran, principalmente em “Despejo na favela” e “Saudosa maloca”, formam um panorama tão real das transformações dos espaços urbanos que é impossível citá-las sem que um filme se forme rapidamente na cabeça. É difícil não terminar a coluna dentro dessa temática, porque quando olho pela janela, quando visito a casa da minha infância, quando ando pela cidade, a cortina do tempo está sempre entreaberta a fazer puxar pela memória o que foi e a estrear, no palco que apaga a História, o que é. Não faz muito sentido, penso eu, viver num lugar onde a ideia de permanência é tão provisória que dura menos que poucas décadas. Na despedida, Paulo Vítola, a tratar dos endereços de nossa cidade, alguns só possíveis na lembrança: “À noite, tem cena no Smart Cinema / No Curitibano, um sarau pra você / E a vida moderna / Nos olhos da moça do Grêmio Buquê / Vamos tomar um café / A conversa está boa / E ouvir foxtrote na PRB-2 / E depois, olhar o sol / Do último andar do Garcez / Caindo pra lá das Mercês / Cobrindo o pinheiro de luz”.