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Endereço: MPB

20 agosto, 2024
Blog | Brazilianwaves

Endereço: MPB

 

“Nove gerações de mulheres sucederam-se entre essas paredes.

A casa supostamente me pertence. Já paguei por ela, deveria ser minha.

Mas não. Na verdade, uma casa nunca pertence. Escapa à propriedade.

Ela é do tempo. (…)

É uma instalação, em todos os sentidos da palavra.

Instala-se a mulher, os filhos e o dinheiro”.

Marguerite Duras

 

A casa própria é quase uma obsessão brasileira. Não é para menos, num país em que a gente nunca sabe o que vai acontecer no dia seguinte, ter segurança de moradia já é meio caminho andado. Ainda que economistas afirmem o mau negócio que é emprestar dinheiro do banco para comprar um imóvel, muita gente se arrisca na questão para ter um lar para chamar de seu. Porque casa é mais que teto e paredes; ter um lugarzinho significa alcance, conquista (e depois de algum tempo, reforma…). É sonho plantado por nossos ancestrais, desde que largamos a vida nômade, que tratamos de realizar como prova de êxito. E é também a base complementar do espaço público, das diferenças de comportamento, dos fenômenos sociais que conhecemos resumidos no título de DaMatta “A casa e a rua”.

Muito poderia ser desenvolvido ainda sobre esse tema, em qualquer um dos aspectos citados, mas a coluna trata de música e hoje vamos visitar as casas da MPB. Quem abre a edição são os poucos conhecidos de nome Gilson, Joran e Marcelo, mas muito de repertório. Os três escreveram “Casinha branca” em 1979 para trilha da novela Marrom Glacê, a música ficou quase um ano nas paradas, vendeu mais de 500 mil cópias e Gilson ganhou disco de Ouro e de Platina. Até hoje a composição anda por aí, vira e mexe alguém regrava, “Eu queria ter na vida simplesmente / Um lugar de mato verde / Pra plantar e pra colher / Ter uma casinha branca de varanda / Um quintal e uma janela / Para ver o sol nascer”.

Outro sonho de sossego de casa, que tem o mesmo tom de calmaria, de alma hippie, de vontade de tranquilidade é a escrita por Tavito e Zé Rodrix para o sexto Festival Internacional da Canção em 1971. Elis Regina presidia o júri e ao ouvir a canção quis gravar. Uma curiosidade: Zé Rodrix, o letrista, em entrevista à Folha de S. Paulo disse que não acreditava muito nesse lance de campo, que se considerava um sujeito completamente urbano. “Eu quero uma casa no campo / Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé / Onde eu possa plantar meus amigos / Meus discos e livros e nada mais”.

E para encerrar o capítulo de casinhas rurais, duas composições: a escrita por Renato Teixeira, uma espécie de demonstração de intenções à amada: “Fiz uma casinha branca / Lá no pé da serra / Pra nós dois morar / Fica perto da barranca do Rio Paraná / A paisagem é uma beleza / E eu tenho certeza / Você vai gostar” e a de J Cascata, também com desejos de convencer quem ele pretende como companheira. Cascata tenta cobrir todas as bases, além do sossego da natureza, a garantia de tecnologia (se fosse escrita hoje, certamente teria wi-fi): “Se você quisesse / Morar na minha palhoça / Lá tem troça, se faz bossa / Fica lá na roça à beira do riachão / E à noite tem um violão / Uma roseira cobre a banda da varanda / E ao romper da madrugada / Vem a passarada / Abençoar nossa união / Tem um cavalo / Que eu comprei em Pernambuco / E não estranha a pista / Tem jornal, lá tem revista / Uma Kodak para tirar nossa fotografia /

Vai ter retrato todo dia / Um papagaio que eu mandei vir do Pará / Um aparelho de rádio-batata”.

Quando eu era menina li trechos de “João Ternura”, único romance de Aníbal Machado, há uma passagem que sempre ficou batucando na minha cabeça. João escreve para amada e ao contar de suas saudades e de seu bem querer, cita que ele gosta tanto dela, que acaba por gostar também de tudo que faz parte de seu universo, incluindo sua rua, sua casa, os muros… Um pouco mais pra frente, conheci a música de Lápis e a associação entre os dois textos foi imediata: “Onde ela mora a lua nasce mais linda / A noite tem mais estrelas / No campo nasce mais flor / Onde ela mora a vida é bem mais bonita / Lá não existe tristeza / Lá que nasceu nosso amor / Onde ela mora minhas mágoas passam longe / Solidão de mim se esconde / Que vontade de viver”.

Na MPB tem gente bem generosa, portas abertas, sem restrições. Foi esse universo que Mariana Aydar e Duani retrataram em “Aqui em casa”: “Quando você chegar / Não precisa interfonar / Mete a mão na maçaneta e pode entrar / Você já sabe onde fica tudo aqui em casa / Fique a vontade, sem cerimônia (…) Na geladeira tem salada / O incensário tá no armário / Aquele verdinho que você gostou / Deixa queimar / Não precisa me esperar pra nada / Você é a visita que eu gosto de ter em casa”.

Um dos endereços mais famosos da MPB é a Rua Nascimento Silva, que está lá estampado, só falta CEP, em “Carta ao Tom 74”, de Toquinho e Vinícius de Moraes. “Rua Nascimento Silva, 107 / Você ensinando pra Elizete / As canções de ‘Canção do amor demais’ / Lembra que tempo feliz / Ai que saudade / Ipanema era só felicidade / Era como se o amor doesse em paz”.

Já que Vinícius entrou na roda, é certo, é justo, lembrar de outro endereço: Rua dos Bobos, número zero. Mas “A casa” não é uma obra fictícia, ela tem nome e endereço real: Casapueblo fica em Punta Ballena, no Uruguai. O fato é que o artista plástico Carlos Vilaró teve ideia de construção em 1958. No início era um quarto feito com latas, depois uns ladrilhos e Vinícius, seu amigo, a cada visita encontrava o lugar diferente, pedaços de paredes e partes em escombros. O Poetinha gostava de passar as tardes lá com seu violão e foi naquele lugar que cantou a música-homenagem pela primeira vez e dedicou-a às filhas do amigo. A construção do palacete demorou 30 anos e hoje é museu, galeria de arte e hotel: “Era uma casa muito engraçada / Não tinha teto, não tinha nada / Ninguém podia entrar nela, não / Porque na casa não tinha chão”.

E a demolição da favela que colocou abaixo um monte de barracos para construir arranha-céu? As cenas cantadas nos versos de Adoniran, principalmente em “Despejo na favela” e “Saudosa maloca”, formam um panorama tão real das transformações dos espaços urbanos que é impossível citá-las sem que um filme se forme rapidamente na cabeça. É difícil não terminar a coluna dentro dessa temática, porque quando olho pela janela, quando visito a casa da minha infância, quando ando pela cidade, a cortina do tempo está sempre entreaberta a fazer puxar pela memória o que foi e a estrear, no palco que apaga a História, o que é. Não faz muito sentido, penso eu, viver num lugar onde a ideia de permanência é tão provisória que dura menos que poucas décadas. Na despedida, Paulo Vítola, a tratar dos endereços de nossa cidade, alguns só possíveis na lembrança: “À noite, tem cena no Smart Cinema / No Curitibano, um sarau pra você / E a vida moderna / Nos olhos da moça do Grêmio Buquê / Vamos tomar um café / A conversa está boa / E ouvir foxtrote na PRB-2 / E depois, olhar o sol / Do último andar do Garcez / Caindo pra lá das Mercês / Cobrindo o pinheiro de luz”.

VAI TRABALHAR, CRIATURA

Dizem por aí que o trabalho dignifica. Alguns esperam por férias, outros gostam tanto de suas obrigações que as transformam em diversão e tem também aqueles que, de fato, vieram ao mundo a passeio. Para cantar situações diferentes, um time de trabalhadores incansáveis da MPB acorda cedo, ou dorme tarde, e se dedica à eterna reportagem de nossas realidades.

Cheio de apontamentos que o cutucavam como não muito chegado ao trabalho pesado, Tim Maia é o primeiro da fila na edição deste mês. Na verdade, as críticas por conta daquele comportamento tão particular, que percorria atrasos e faltas, mas que era também exercício de liberdade, nem sempre eram certas. O grande Sebastião Rodrigues Maia era um criador, um homem de muitas realizações e de batalha dura, na vida e na arte – síndico dos sete mares. Ironicamente começamos com Sossego, música lá da década de 1970, que todo mundo sabe até hoje: “Ora bolas, não me amole / Com esse papo de emprego / Não está vendo? / Não estou nessa, / O que eu quero é sossego / Eu quero sossego”.

Da árvore de Tim nasceram outros galhos. Entre eles, Ed Motta, que mês passado tratou de se indispor com fãs e não-fãs a falar bobagens na internet. Essa é outra história, mas, na de hoje, cabe lembrar de Vamos Dançar, parceria com Rafael Cardoso, que se alimenta no suingue e na temática de Sossego: “Eu não nasci para trabalho/ Eu não nasci para sofrer / Eu percebi que a vida / É muito mais que vencer”.

Mas bem antes dessa plantação, em 1931, Joubert de Carvalho e Olegário Mariano trataram de vingar dois males de uma vez só e numa única atitude: deixaram o trabalho de lado para desforrar a ingrata. O cateretê De papo pro ar tem humor, sabor e vende bem a ideia de um sertanejo em dia com o autocompromisso da felicidade: “Quando no terreiro / Faz noite de luá / E vema saudade / Me atormentá / Eu me vingo dela / Tocando viola / De papo pro á / Se ganho na feira / Feijão, rapadura / Pra que trabaiá / Eu gosto do rancho / O homem não debe / Se amofiná”.

Um tiquinho mais responsáveis, mas andando ali, na beira do precipício, Herivelto Martins e Roberto Roberti escreveram Izaura, música que desfilou pelo carnaval de 1945 e foi para disco de João Gilberto em 1977; o cidadão, responsável e ponderado, sofre aflito entre os deveres do trabalho e as entregas do amor: “O trabalho é um dever / Todos devem respeitar / Oh, Izaura, me desculpe / No domingo eu vou voltar / Seu carinho é muito bom / Ninguém pode contestar / Se você quiser, eu fico / Mas vai me prejudicar / Eu vou trabalhar”.

Outro que teve problemas entre os prazeres da companhia da mulher amada e as obrigações do relógio foi Jorge Ben, que não consentia deixar Bebete saracoteando sozinha no samba enquanto tinha que ir pra casa para o merecido descanso. Bebete Vão bora: “E você sabe muito bem / Que logo mais eu tenho que trabalhar / Já não posso mais chegar atrasado / E nem pensar em faltar / Pois o novo gerente / Não é lá muito meu amigo”.

E os artistas do marketing, aqueles que vendem de tudo ou que emprestam assunto alheio para contar sobre quem anda por aí ganhando o pão e o leitinho das crianças na arte de propagandear seus produtos? Nesse tema, destaco três momentos da MPB: Vendedor de Caranguejo, de Gordurinha: “Caranguejouçá / Caranguejouçá / Apanho ele na lama / E trago no meu caçuá / Tem caranguejo / Tem gordo guaiamum / Cada corda de dez / Eu dou mais um”; Vendedor de Bananas, repetindo Jorge Ben: “Olha a banana / Olha o bananeiro / Eu trago bananas prá vender / Bananas de todas qualidades / Quem vai querer / Olha banana Nanica / Olha banana Maçã / Olha banana Ouro / Olha banana Prata / Olha a banana da Terra / Figo São Tomé / Olha a banana d’Água / Eu sou um menino / Que precisa de dinheiro / Mas prá ganhar de sol a sol / Eu tenho que ser bananeiro” e Menino das Laranjas, de Theo de Barros “É madrugada, vai sentindo frio / Porque se o cesto não voltar vazio / A mãe já arranja um outro para laranja / Esse filho vai ter que apanhar / Compra laranja, doutor, / Ainda dou uma de quebra pro senhor!”. A última, um pouquinho mais forte, porque trata da infância, da realidade dura de quem trabalha ainda no tempo de brincar, mais do que a composição de Ben. Theo de Barros gosta de olhar para a sociedade na qualidade de quem a despe, procura seus pormenores para denunciá-la.

Adoniran Barbosa se dedicou a contar algumas rotinas de trabalhadores simples, força bruta que constrói o Brasil com braço forte. Um desses momentos é Torresmo à Milanesa, simpática e doidinha de realidade, tem parceria com Carlinhos Vergueiro: “O enxadão da obra bateu onze hora / Vamos embora, João! / Que é que você troxe na marmita, Dito? / Troxe ovo frito, troxe ovo frito / E você, Beleza, o que é que você troxe? / Arroz com feijão e um torresmo à milanesa / Da mina Tereza! […] O mestre falou / Que hoje não tem vale não / Ele se esqueceu / Que lá em casa não sou só eu”.

A mãe solteira que trabalha de empacotadeira, o pedreiro pensador que espera que sua sorte mude, os pescadores de Dorival Caymmi, a trabalhadora da fábrica de tecidos, lavadeiras do rio que ensaboam roupas, garçons que aturam malandros, malandros regenerados que sobem em bonde a caminho do trabalho e muitas, muitas outras profissões têm lugar garantido no mundo da música popular brasileira, que é retrato da vida, que narra o cotidiano e que denuncia os detalhes mais rotineiros do país.

E é assim, dignificando a existência ou se distraindo de si ou só, e tão-somente, para pagar as contas, que todo mundo, e cada um, passa os dias – emprego curioso desse meio tempo que temos, entre a vida e a morte.

Bom trabalho e até mês que vem.

Por: Adriana Sydor

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